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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Um Voo de Pombas - Os primeiros anos de Alexandre II - Primeira Parte

A imperatriz Alexandra Feodorovna com os seus dois filhos mais velhos: Maria e Alexandre
Em meados do século XIX, a ideia de um trono passar pacificamente de pai para filho era uma novidade na Rússia, onde, ao longo de duzentos anos, a sucessão tinha sido problemática e, muitas vezes, violenta. Alexandre I tornou-se czar após o assassinato do pai e muitos suspeitavam que ele tinha estado envolvido no mesmo; a sombra dessa dúvida nunca o abandonou. O seu irmão mais novo foi obrigado a subir ao trono que não queria devido à repressão violenta da Revolta Dezembrista. Por isso, quando Nicolau I morreu na sua cama e deixou um filho capaz, com experiência e pronto para assumir o governo do país, até os inimigos da dinastia estavam prontos para acreditar num futuro melhor. Mas este tipo de esperança já rodeava o czar desde o seu nascimento.

Alexandre II com a sua irmã Maria Nikolaevna
Os presságios favoráveis e ruinosos acompanham sempre os príncipes como uma sombra. Quando a criança que se tornaria no "Czar Libertador" da Rússia nasceu no Kremlin em Abril de 1818, todos os sinos de Moscovo estavam a tocar para celebrar a Páscoa. Diz-se que um bando de pombas brancas sobrevoou o telhado do Mosteiro Chudov, onde, tradicionalmente, os bebés imperiais eram baptizados. Muitas vezes repetida, esta história acabaria por simbolizar o pesado fardo de esperança e expectativa que Alexandre Nikolaevich sempre carregou consigo. Ao descrever o seu nascimento muitos anos depois, a sua mãe lembra-se de se ter sentido "um tanto solene e melancólica, ao pensar que aquele menino seria um dia o imperador". 

Alexandre Nikolaevich
Existem pequenos vislumbres da infância de Alexandre Nikolaevich nas cartas da sua avó, a imperatriz Maria Feodorovna. "O menino (...) muda todos os dias. É uma criança encantadora (...) sobe às árvores, mas acho que consegue livrar-se das situações mais perigosas. Baloiça-se nos ramos, salta por todo o lado (...) o Sasha é ágil como um macaquinho". Protegido por uma família anormalmente chegada e afectuosa, Alexandre não tinha noção da importância da sua posição. O seu pai, o grão-duque Nicolau Pavlovich, era severo, mas também sabia dar o braço a torcer e brincar com os filhos nas alturas certas e, muitas vezes, tinha um papel activo nos seus jogos. Quando Alexandre tinha seis anos de idade, o gentil capitão Karl Merder foi nomeado para substituir as suas amas e governantas, mas o padrão pacifico da sua vida não foi perturbado por esta mudança.


Alexandre com a sua irmã Maria Nikolaevna
Uma outra mudança que teve um impacto mais palpável aconteceu em 1825, quando o seu pai Nicolau subiu ao trono da Rússia num período de caos e violência. Quando os Dezembristas dispararam os primeiros tiros na Praça do Senado, a ideia de russos a derramar sangue uns dos outros parecia uma novidade assustadora, no entanto, com o passar do tempo, tornar-se-ia em algo demasiado familiar. O pequeno Alexandre não deve ter percebido o que estava a acontecer à sua volta. Durante alguns dias mais tensos, teve de sair de sua casa e foi colocado sob a protecção dos Guardas Finlandeses, no pátio iluminado a tochas do Palácio de Inverno, e ficou ao lado da sua mãe destroçada enquanto ela rezava pela protecção do marido. Foi uma apresentação assustadora ao mundo do poder político. Desde cedo que Alexandre começou a ser educado para levar a cabo as reformas que a Rússia tanto precisavam nas temia as forças que as reformas mal executadas poderiam libertar. A sombra daqueles dias de Dezembro nunca o abandonou. Mas nunca houve um príncipe melhor preparado do que ele: em 1826, Nicolau I ofereceu ao poeta Zhukovsky a posição de tutor do herdeiro, em parceria com Merder.

Alexandre Nikolaevich
Perante os acontecimentos, Zhukovsky parece ter sido uma escolha improvável. Filho ilegítimo de um proprietário das províncias, a sua mãe tinha sido uma refém adolescente, levada para a Rússia depois de uma das guerras do império contra a Turquia. O seu pai proporcionou-lhe uma boa educação, com o objectivo de o preparar para o serviço público, mas o jovem Zhukovsky nunca se sentiu atraído por essa área. Foi andando de emprego em emprego até que os seus poemas chamaram a atenção da imperatriz-viúva Maria Feodorovna. Foi na sua casa que Zhukovsky floresceu e, quando o seu filho Nicolau casou com a princesa de Berlim, o poeta foi o escolhido para lhe ensinar a língua russa. Seria Alexandra a pedir ao marido para nomear Zhukovsky para tutor do seu filho mais velho. O poeta mostrou ser imune às tentações da vida na corte. Honesto e idealista, dizia aquilo que pensava sem temer represálias e nunca se aproveitou da sua posição privilegiada junto dos imperadores. Acabaria por morrer relativamente pobre.

Vasily Zhukovsky, tutor de Alexandre.
Ainda antes de iniciar o seu trabalho, Zhukovsky emitiu um proteste veemente contra a introdução do czarevich de oito anos à vida militar. Tinha sido permitido ao rapaz andar de cavalo ao lado das tropas durante a parada da coroação do seu pai: as multidões adoraram o momento e Nicolau não conseguiu esconder o seu orgulho, mas Merder reparou que Alexandre ficou demasiado entusiasmado depois e não se conseguia concentrar nas suas lições. "Senhora, perdoe-me," escreveu Zhukovsky à czarina, "uma paixão demasiado desenvolvida pela arte da guerra - mesmo se encorajada durante uma parada - seria prejudicial para o corpo e para a mente (...) ele acabaria por ver o seu povo como um regimento gigantesco e o seu país como um quartel". Inicialmente, o czar ficou furioso, mas quando o tutor ameaçou demitir-se, acabou por ceder e ouviu as ideias do poeta.

Alexandre Nikolaevich
Zhukovsky definiu um programa de estudos de nove anos para o czarevich. Alexandre teria dois colegas com quem iria partilhar as suas lições, num ambiente escolar estruturado que não deveria ser interrompido por qualquer dever cerimonial. Os três iriam dormir, comer, trabalhar e brincar juntos: a competição entre eles eram mal vista, e os rapazes foram encorajados a discutir os livros que andavam a ler uns com os outros, assim como a escrever diários. As áreas mais importantes da sua formação foram história, línguas e uma temática religiosa. À medida que foram progredindo, os rapazes também começaram a aprender ciências, direito e filosofia. O bom-comportamento era recompensado com a oportunidade de colocar dinheiro na caixa para os pobres - algo que poderia ser uma receita para o desastre noutras salas-de-aula. O treino militar era uma parte secundária do programa, durante o qual aprendiam esgrima, ginástica e equitação. Aos domingos as aulas eram substituídas por trabalhos manuais e passeios.

Alexandre Nikolaevich
Quando estava bem-disposto, Alexandre era uma criança educada e honesta, era visivelmente inteligente e tinha uma natureza generosa. Ficava comovido com qualquer sinal de sofrimento e tristeza. Mas, apesar de tudo, não deixava de ser um rapaz normal que também tinha momentos de travessuras e preguiça, e os seus tutores repararam que tinha a tendência preocupante de transformar qualquer pequeno percalço numa crise. Chorava com demasiada facilidade e, muitas vezes, sem motivo. Com paciência e com o passar do tempo, Zhukovsky descobriu temia a sua herança, por ter ainda na memória a violência da Revolta Dezembrista, que associava à subida ao poder do pai. Alexandre tinha onze anos quando a sua mãe deu à luz um segundo filho varão. Alexandre terá dito: "Estou tão feliz. Assim o papá vai poder escolhê-lo a ele para herdeiro".

Nicolau I (centro) com Alexandre (esquerda), Constantino (direita), Nicolau e Miguel durante a Guerra da Crimeia.
Apesar de Zhukovsky ser gentil, o seu idealismo exacerbado também pode ter contribuído para os medos do seu aluno. Em certa ocasião, deu a Alexandre um ensaio no qual definia aquele que, do seu ponto de vista, era o governante ideal, e o futuro czar guardou-o consigo o resto da vida. "Respeita a lei," escreveu Zhukovsky, "uma lei que seja negligenciada pelo czar nunca será cumprida pelo povo (...). Respeita a opinião pública, pois esta ilumina muitas vezes o soberano (...). Governa pela ordem, não pelo poder (...). Ama o teu povo; a não ser que o czar ame o seu povo, o povo não pode amar o seu czar". O tutor também deixou a seguinte nota na secretária de Alexandre: "Serás tu a entrar na História um dia. Isso é inevitável pelo acaso do teu nascimento. A História irá julgar-te antes do resto do mundo e esse julgamento será para todo o sempre". Era uma perspectiva aterrorizante para um rapaz de onze anos.

Alexandre Nikolaevich
Nesse mesmo ano, em 1829, Alexandre participou em manobras militares pela primeira vez. O seu pai notou uma certa falta de entusiasmo, o que levou ao aumento das tensões entre o czar e os tutores do filho. Nicolau queria que se desse mais importância às ciências militares e ficou chocado quando Zhukovsky escolheu para tutor de História do filho o professor Arseniev, que tinha sido expulso da universidade onde dava aulas por ter atacado a corrupção do sistema judicial. Zhukovsky argumentou que Alexandre tinha de compreender em que estado se encontrava realmente o país. Um professor de religião de quem ele gostava particularmente foi dispensado devido às suas simpatias por dissidentes. À medida que as tensões entre a escola e a corte aumentavam, Alexandre começou a levar as aulas menos a sério e a discutir com os seus companheiros. Em 1832, Merder sofreu um pequeno ataque cardíaco. Arseniev culpou Alexandre pelo sucedido e ele desfez-se em lágrimas e prometeu que se iria portar melhor.


Alexandre Nikolaevich
Alexandre estava prestes a iniciar uma nova etapa da sua vida. Em 1834, quando fez dezasseis anos de idade, tornou-se no primeiro príncipe Romanov a fazer um juramento de lealdade ao czar - com o passar do tempo, este iria tornar-se num ritual de passagem importante para todos os homens da família imperial. As palavras e o cenário eram esmagadores: na capela do Palácio de Inverno, perante uma congregação de cortesãos, representantes do governo, convidados estrangeiros e do clero, o jovem prometeu obedecer ao pai "em tudo, sem poupar o meu corpo, até à minha última gota de sangue". "Pushkin recordou que todos os presentes "ficaram profundamente comovidos". Muitos não conseguiram segurar as lágrimas. Alexandre herdou a sua fortuna naquele dia e, por opção própria, ofereceu quantias de dinheiro generosas aos governadores-gerais de São Petersburgo e Moscovo para que eles as distribuíssem pelos pobres. Só muito mais tarde é que soube que Merder, que tinha ido para Itália para descansar e recuperar a saúde, tinha sofrido outro ataque cardíaco alguns dias antes da cerimónia e que a última palavra que tinha dito antes de morrer tinha sido o nome do seu aluno.


Alexandre Nikolaevich
O czarevich voltou para a sala de aulas com a determinação de ter sucesso. Sentia-se culpado e triste por Merder e a única forma que encontrou para se sentir melhor foi através do trabalho. Ainda faltavam três anos para concluir o sistema de nove criado por Zhukovsky e, no exame final, o jovem de dezanove anos mostrou que dominava várias áreas de conhecimento e que possuía uma compreensão profunda do mundo à sua volta. Mas, além das aulas, Alexandre também passou os seus três últimos anos de estudo a conhecer a sociedade. Todos os queriam ver e, para um rapaz habituado a camas de campanha e a salas-de-aula funcionais, esta nova vida deve ter parecido cheia de tentações. Inevitavelmente, começaram a surgir alguns rumores de que o czarevich estava apaixonado, mas nada escandaloso. Além do mais, Alexandre detestava lisonjas. Não demorou muito até toda a corte estar rendida ao seu futuro imperador.

Alexandre Nikolaevich
Com a sua educação formal concluída, Alexandre foi enviado para uma visita de sete meses pela Rússia, com uma agenda de visitas exigente elaborada pelo pai. Na companhia de Zhukovsky e do General Kavelin, o substituto de Merder, o herdeiro viajou por todo o país a uma velocidade estonteante. "Até quando estamos na cama à noite," queixou-se Zhukovsky à czarina, "sentimos que ainda estamos a galopar". As vilas que iam surgindo pelo caminho organizaram recepções civis, missas nas igrejas, banquetes e bailes, e os dignitários locais faziam fila para conhecer o seu futuro governante. Os camponeses faziam caminhadas de vários quilómetros só para ver a carruagem de Alexandre a passar. O grupo visitou escolas, hospitais, fábricas, instituições caritativas e igrejas; Alexandre observava e ouvia com interesse, mas sabia que ainda lhe faltava ver muita coisa.

Alexandre Nikolaevich
Alexandre começou a pedir para parar nas aldeias mais sujas e negligenciadas, nas quais saía da carruagem e caminhava, entrando nas cabanas dos camponeses como convidado. Não se importava que estas visitas não planeadas atrasassem a sua agenda. Para os camponeses devem ter parecido visitas fora deste mundo, mas se alguém se sentisse demasiado intimidado para falar, pelo menos Alexandre podia ver com os seus próprios olhos como viviam. O seu itinerário incluía uma visita à Sibéria, onde a família imperial nunca tinha estado. Enquanto lá esteve, decidiu ir visitar os campos de prisioneiros para falar com eles enquanto estes arrastavam as suas correntes. Em Tobolsk, fez um desvio especial para conhecer os Dezembristas exilados, responsáveis por uma rebelião da qual ele tinha as piores recordações. As condições do seu exílio deixaram-no de tal forma chocado que Alexandre escreveu uma carta arrebatadora ao pai a pedir-lhe clemência. O czar ouviu, mas não fez nada.

Nicolau I e Alexandre Nikolaevich
É fácil ver estas histórias com algum cinismo. Alexandre vinha do nível mais privilegiado da sociedade e quando a sua visita acabasse, ele podia regressar aos seus palácios. Mas os seus sentimentos eram genuínos e duradouros: ele insistiu em ver o verdadeiro estado em que se encontrava a Rússia, e não admira que tenha sido a fonte de grandes esperanças. O desafio seria quando o seu desejo de fazer o bem tivesse de ser traduzido em acções políticas duras. Nessa altura, as certezas dos ensinamentos de Zhukovsky, de que a opinião pública ficaria sempre do lado de um governante justo, e de que, se um governante que amasse o seu povo, este iria sempre amá-lo em troca, já não fariam tanto sentido.


Alexandre Alexandrovich
No entanto, por agora, tudo o que Alexandre fazia se transformava em ouro. A Rússia adorava-o e a sua missão seguinte seria uma digressão pela Europa pela qual os seus pais ansiavam com urgência uma vez que os rumores sobre as paixões de Alexandre se tinham transformado em realidade. Em inícios de 1838, Alexandre tinha-se apaixonado profundamente por uma dama-de-companhia polaca chamada Olga Kalinovskaya e, apesar de o czarevich saber que nunca se poderia casar com ela, os pensamentos de como poderia ser uma vida ao pé dela atormentavam-no. Alexandre iria apaixonar-se com demasiada facilidade e demasiado envolvimento o resto da vida. O seu pai compreendia-o e estava ansioso por o levar a conhecer o mundo, por o manter ocupado e por lhe encontrar uma esposa adequada. O czar planeou um calendário exaustivo para o filho que Alexandre seguiu com vontade, mas não demorou muito até o ritmo o começar a afectar. No início do verão de 1838, quando se encontrava em Copenhaga, Alexandre apanhou uma constipação que rapidamente se agravou e transformou numa bronquite que o obrigou a passar vários dias de cama. Finalmente a sua comitiva chegou até Ems, mas acabaram por ficar retidos na cidade durante três meses, devido aos ataques de tosse agoniantes e às febres que o czarevich não conseguia curar. Durante o resto da viagem, sofreu de asma.

Olga Kalinovskaya 

Texto retirado do livro "Romanov Autumn" de Charlotte Zeepvat

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