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sábado, 16 de janeiro de 2016

Memórias do grão-duque Alexandre Mikhailovich - A Última Visita ao Palácio de Alexandre

O grão-duque Alexandre Mikhailovich da Rússia (1866-1933)
O ano novo de 1917 começou com grandes mudanças no executivo e ainda mais tristeza. O príncipe Golitzin, recentemente nomeado primeiro-ministro, era uma caricatura da palavra francesa “ramolli”. Não compreendida nada, não sabia nada e só o Nicky e a Alix poderiam explicar porque se lembraram de nomear aquele antigo cortesão sem qualquer experiência administrativa. Juntamente com o ministro do interior, Protopopoff, um cobarde histérico e antigo liberar que se transformou em conservador ortodoxo graças à magia de Rasputine, os dois eram um par extraordinário que assentava que nem uma luva no acto final da Morte da Nação.

O grão-duque Alexandre com a sua esposa, a grã-duquesa Xenia
Em inícios de Fevereiro, recebi ordens da Stavka para estar presente numa conferência em São Petersburgo com os representantes dos governos aliados para discutir as munições que iriamos precisar para os doze meses seguintes. Decidi aproveitar esta oportunidade para me encontrar com a Alix. Em Dezembro, durante a minha última visita à cidade, não a quis incomodar [esta visita do grão-duque realizou-se pouco depois do assassinato de Rasputine], mas, desta vez, sentia-me zangado o suficiente para lhe dizer aquilo que pensava. A esta altura já todos esperávamos que rebentasse uma revolta na capital. Alguns “especialistas” diziam que essa revolta seria iniciada dentro do palácio, o que significava que o czar seria obrigado a abdicar a favor do seu filho Alexei e os poderes da regência seriam entregues a um conselho de pessoas que “compreendiam o povo russo”. Este projecto deixou-me estupefacto. Nunca tinha conhecido ninguém que compreendesse o povo russo. A ideia parecia-me ter origem estrangeira e acabaria por descobrir que tinha surgido da embaixada britânica. Um jovem rico e bem-parecido visitou-me em Kiev pouco tempo depois e falou-me por alto deste plano extraordinário, inventado pelos britânicos. Disse-lhe que tinha escolhido o homem errado para se confessar, uma vez que jamais um grão-duque poderia quebrar o juramento que tinha feito ao imperador. Foi a estupidez dele que o livrou de ser castigado de forma mais severa. Depois da revolução, tornou-se um criado muito estimado do senhor Kerensky e ocupou os cargos de ministro das finanças e ministro dos assuntos estrangeiros.

Alexandra, Xenia e Alexandre por volta de 1912
Assim, cheguei a São Petersburgo, felizmente pela última vez na vida. No dia que tinha sido marcado para a minha conversa com a Alix, chegou uma mensagem de Czarskoe Selo a informar-me de que ela não se sentia bem e que não me podia receber. Escrevi-lhe uma carta pouco simpática onde lhe implorava que me deixasse falar com ela, uma vez que só ia estar na capital alguns dias. Enquanto esperava pela resposta dela, falei com várias pessoas. O meu cunhado, Misha [o grão-duque Miguel Alexandrovich] estava na cidade e sugeriu que devíamos falar com o irmão dele [Nicolau II], um de cada vez, assim que eu conseguisse falar com a Alix. O presidente da Duma, o senhor Rodzianko, um homem gordo e insípido, visitou-me e informou-me de uma série de rumores, teorias e planos anti-dinásticos. A arrogância dele não tinha limites. Juntamente com as suas deficiências mentais, parecia o bobo da corte das comédias medievais. Um mês depois, deu a Cruz de São Jorge a um soldado do Regimento Volinsky que tinha sido o primeiro homem a matar o seu comandante em 1917. Nove meses depois, Rodzianko foi obrigado a fugir de São Petersburgo quando passou a ser perseguido pelos bolcheviques.

O grão-duque Alexandre (esq.) com soldados durante a Primeira Guerra Mundial
Depois recebi um convite da Alix para um lanche em Czarskoe Selo. Ah, aqueles lanches! Tenho a sensação que desperdicei quarenta anos da minha vida naqueles lanches em Czarskoe Selo.

A Alix estava na cama e prometeu receber-me assim que terminássemos a refeição. Na mesa havia oito pessoas: o Nicky, eu, o herdeiro, as quatro grã-duquesas imperais e o ajudante-de-campo Linevich. As meninas estavam vestidas com os seus uniformes da Cruz Vermelha e falaram do trabalho que estavam a fazer no seu hospital. Já não as via desde a primeira semana da guerra e achei que estavam crescidas e muito bonitas. A mais velha, Olga, tinha opiniões muito parecidas com a sua tia, a grã-duquesa Olga Alexandrovna. A segunda mais velha, Tatiana, era a mais bonita da família. Estavam todas bem-dispostas Não sabiam nada sobre os eventos políticos que estavam a acontecer. Brincaram com o irmão e elogiaram os feitos da sua tia Olga. Foi a última vez que me sentei na mesa deles em Czarskoe Selo e, por isso, foi também a última vez que vi os filhos do czar.

Grão-duque Alexandre Mikhailovich (centro) com o czar Nicolau II e as grã-duquesas Olga Alexandrovna, Xenia Alexandrovna, Tatiana e Olga
Tomámos o café no salão lilás enquanto o Nicly foi até à sala ao lado para avisar a Alix que eu já estava pronto para a ver.

Entrei com cuidado. A Alix estava deitada na cama, vestida com uma camisa de dormir beje e com uma expressão de preocupação no seu belo rosto que parecia anunciar problemas para este intruso indesejado. Estava prestes a ser atacado, o que me deixou triste, uma vez que não vinha como inimigo, mas sim para ajudar. Também não gostei de ver o Nicky sentado ao lado dela na cama, uma vez que, na minha carta, tinha pedido especificamente para falar com ela em privado. Seria embaraçoso avisá-la que estava a arrastar o marido para o abismo com ele presente.

Alexandra Feodorovna
Beijei-lhe a mão e ela tocou ao de leve na minha bochecha com os seus lábios: a saudação mais fria que ela alguma vez me deu desde que nos conhecemos em 1893. Peguei numa cadeira e coloquei-a perto da cama, em frente a uma parede coberta de ícones iluminados por dois círios.

Comecei a apontar para os ícones e a dizer que gostava de falar com ela tão abertamente como se me estivesse a confessar ao meu padre. Dei-lhe uma ideia geral da situação política, hesitei em dizer-lhe que a propaganda revolucionária já tinha penetrado por toda a população e que os liberais e caluniosos estavam a acreditar nela.

Ela interrompeu-me zangada:

Isso não é verdade. A nação continua a ser-lhe leal”, disse, virando-se para o Nicky. “Só a Duma traiçoeira e a sociedade de São Petersburgo é que estão contra ele.

Alexandra e Nicolau em 1917
Admiti que a afirmação dela estava, em parte, correcta.

Alix, não há nada mais perigoso do que uma meia-verdade”, disse-lhe, olhando-a directamente nos olhos. “A nação é leal ao seu czar, mas a nação também está indignada com a influência que aquele homem, o Rasputine, exerceu. Ninguém sabe melhor do que eu o amor e devoção que tens pelo Nickly e, no entanto, tenho de confessar que a tua interferência nos assuntos de estado está a prejudicar tanto o prestígio do Nicky como a concepção que o povo tem do seu czar. Sempre fui um dos teus amigos mais fiéis, Alix, durante vinte-e-quatro anos. Continuo a sê-lo e, como teu amigo, tenho de te avisar que todas as classes estão contra as tuas políticas. Tens uma bela família, porque não te dedicas a assuntos que tragam paz e harmonia? Por favor, Alix, deixa os assuntos de estado para o teu marido.

Ela corou e olhou para o Nicky. Ele não disse nada e continuou a fumar. É triste que, quando falo do comportamento do último czar em momentos de crise, tenha de repetir sempre a mesma frase: “não disse nada e continuou a fumar.” Mas o que posso fazer se, qualquer outra frase não corresponde à verdade?

Nicolau II por volta de 1915
Continuei. Expliquei que, por muito que fosse contra as reformas parlamentares na Rússia, acreditava que conceder um governo aceitável à Duma iria retirar responsabilidades ao Nicky e tornar a tarefa dele mais fácil.

Por favor, Alix, não deixes que a tua sede de vingança supere o teu bom senso. Se houvesse uma mudança radical nas nossas políticas, poderíamos desviar a raiva da população. Não deixes que essa raiva expluda.

A Alix escarniou-me. “Esta conversa é ridícula. O Nicky é um autocrata. Como pode partilhar os seus direitos divinos com um parlamento?

Alexandre Mikhailovich com a sua esposa, Xenia
Estás muito enganada, Alix. O teu marido deixou de ser autocrata no dia 17 de Outubro de 1905. Só nesse dia é que ele podia ter pensado nos direitos divinos dele. Agora é tarde demais. Talvez daqui a dois meses já não reste nada deste nosso país que nos faça lembrar que alguma vez existiram autocratas no trono dos nossos antepassados.”

Ela deu-me uma resposta incoerente e levantou a voz, o que me levou a levantar também a minha. Nessa altura, decidi mudar o tom da conversa.

Lembra-te, Alix, que estive calado durante trinta meses!” Gritei enfurecido. “Durante trinta meses, nunca te disse uma palavra sobre os acontecimentos escandalosos do governo, do teu governo! Estou a ver que estás disposta a morrer e que o teu marido é da mesma opinião, mas então e nós? Temos de sofrer todos por causa da tua teimosia cega? Não, Alix, não tens o direito de arrastar os teus parentes contigo para o precipício! Estás a ser profundamente egoísta!

Alexandra Feodorovna
Recuso-me a continuar com esta discussão," disse ela, friamente. “Estás a exagerar o perigo. Um dia destes, quando não estiveres tão zangado, vais admitir que eu é que tinha razão.”

Levantei-me, beijei-lhe a mão, ela não me cumprimentou, e fui-me embora. Nunca mais a voltei a ver.

Quando passei pelo salão lilás, vi o ajudante-de-campo do czar, o Linevich, a falar com a Olga e a Tatiana. A presença dele, mesmo ao lado do quarto da czarina, surpreendeu-me. A Madame Vyrobovna, a principal confidente da Alix durante os últimos anos do regime, e uma grande admiradora do Rasputine, diz nas suas memórias que “a czarina tinha medo que o grão-duque Alexandre perdesse a compostura e fizesse algum disparate.” Se isso for verdade, então a Alix não tinha mesmo noção do que se passava, o que pode justificar a sua teimosia.

Alexandra, Nicolau e o grão-duque Miguel Alexandrovich
No dia seguinte, o Misha e eu falamos com o czar, o que foi uma perda de tempo tanto para ele como para nós. Eu praticamente não consegui falar. Os nervos e as emoções não me deixaram. “Obrigado, Sandro, pela carta que me enviaste de Kiev.” Foi a única referência que fez às várias páginas que lhe escrevi com conselhos.

Alexandre Mikhailovich
Texto retirado do livro de memórias do grão-duque Alexandre Mikhailovich "Once a Grand Duke".

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